quarta-feira, 12 de fevereiro de 2014

A fila sem fim dos demônios descontentes - Bruna Beber

John Cage

partiremos
surgiremos
morreremos

dos barulhos afinados estancados das sirenes do corpo
de bombeiros

surgiremos
morreremos
partiremos

dos assovios noturnos
do vento
nas altas esquadrias

morreremos
partiremos
surgiremos

num palco abandonado
para cantar uma música
e sair.


Hyde Park (Crônica de um amor louco)

desde o dia que ouvi o barulho
da porta batendo
fiquei anos sem ouvir barulho
de porta batendo
o médico diz é surdez
eu digo é que nunca mais
abri as portas


Vivo

disca de novo e diz
que é você o número estranho
que me ligou ontem no celular
diz qual é o seu novo número
que eu não sirvo mais
e que agora você me esconde atrás do amarelado
nas fotografias.


Situação

to dormindo no lodo
da vala confortável onde dormem
os apaixonados

e lambendo sabão de cachorro
sorrindo, e sentindo cheiro de maçã
onde não tem

chamando os amigos pra almoçar
e deixando a comida esfriar
pra falar de você.


Grambery

é parecido com a buzina
de quem sai de férias com as crianças
para o Litoral
&
com o olho de quem ganha o primeiro níquel fazendo
o que gosta

o amor é para os que conseguem
encarar o balé
noturno de luzes
perto dos pedágios
&
não para os que choram
a bezerra morta
por uma scania cinco eixos
no acostamento

é parecido com organizar o mobiliário urbano
porque você chegou de viagem
e vem para o jantar
&
com incendiar um cobertor Paraíba
despetalado no vento
frio da serra.


Fabíola Cristina

cresci com os morcegos de uma antiga amendoeira do quintal
de ponta a cabeça da meia-noite em diante
observando o movimento das bocas de fumo
e dos pais de família voltando do trabalho
e com os mendigos no pátio duma clínica de reabilitação
abandonada na rua de trás eu brincava de fingir de morto
e de fugir do hospício pelos muros laterais
me chamavam bebê-tarzan
bebê-diabo
outros bebê-mascote
de uma quadrilha de tráfico de drogas da baixada fluminense
só porque eu brincava cos vendedores de cavaco-chinês
de cortina, panela e colcha de tergal
às sextas-feiras no portão da frente da casa da minha avó
que na verdade eram atravessadores de artesanato
do nordeste prum distante bairro curiosamente chamado Centenário
só porque eu era amiga dos malucos
das vagabundas e do dono da barraca de cheiro-verde
em frente ao Mercado Municipal
dos desajustados e dos desvalidos
d'a fila sem fim dos demônios descontentes no amor
duma pichação do Viaduto do Caju
em frente ao armazém 5
do Cais do Porto.



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