quarta-feira, 5 de fevereiro de 2014

Inéditos e Dispersos - Ana Cristina Cesar

Quando chegar

Quando eu morrer,
Anjos meus,
Fazei-me desaparecer, sumir, evaporar
Desta terra louca
Permiti que eu seja mais um desaparecido
Da lista de mortos de algum campo de batalha
Para que eu não fique exposto
Em algum necrotério branco
Para que não me cortem o ventre
Com propósitos autopsianos
Para que não jaza num caixão frio
Coberto de flores mornas
Para que não sinta mais os afagos
Desta gente tão longe
Para que não ouça reboando eternos
Os ecos de teus soluços
Para que perca-se no éter
O lixo desta memória
Para que apaguem-se bruscos
As marcas do meu sofrer
Para que a morte só seja
Um descanso calmo e doce
Um calmo e doce descanso.

Ciúmes
Tenho ciúmes deste cigarro que você fuma
Tão distraidamente.

                  ***

Tenho uma folha branca
                                 e limpa à minha espera:
mudo convite

tenho uma cama branca
                               e limpa à minha espera:
mudo convite

tenho uma vida branca
                             e limpa à minha espera:

Visita
olhos por olhos
um copo, uma gota d'água
atrás deste flaflu
           desta caixinha de música
           desta bala de goma

teu gosto, tua cor, teu som, teu meu

Psicografia
Também eu saio à revelia
e procuro uma síntese nas demoras
cato obsessões com fria têmpera e digo
do coração: não soube e digo
da palavra: não digo (não posso ainda acreditar
na vida) e demito o verso como quem acena
e vivo como quem despede a raiva de ter visto

                  ****

Eu penso
a face fraca do poema/ a metade na página
partida
Mas calo a face dura
flor apagada no sonho
Eu penso
a dor visível do poema/ a luz prévia
dividida
Mas calo a superfície negra
pânico iminente do nada

          ****

imagino como seria te amar

teria o gosto estranho das palavras
que brincamos
                              e a seriedade de quando esquecemos
quais palavras

imagino como seria te amar:
desisto da ideia numa verbal volúpia
e recomeço a escrever
                                             poemas.

                       
            ****

A gente sempre acha que é
Fernando Pessoa

               ****

Acreditei que se amasse de novo
esqueceria outros
pelo menos três outros rostos que amei
Num delírio de arquivística
organizei a memória em alfabetos
como quem conta carneiros e amansa
no entanto flanco aberto não esqueço
e amo em ti os outros rostos

             ****

Estou vivendo de hora em hora, com muito temor.
Um dia me safarei - aos poucos me safarei, começarei um safari.

           ****

Nada disfarça o apuro do amor.
Um carro em ré. Memória da água em movimento. Beijo.
Gosto particular da tua boca. ùltimo trem subindo ao ceu.
Aguço o ouvido.
Os aparelhos que só fazem som ocupam o lugar
clandestino da felicidade.
Preciso me atar ao velame com as próprias mãos.
Sirgar.
Daqui ao fundo do horto florestal ouço coisas que
nunca ouvi, pássaros que gemem.

           *****

A ponto de
partir, já sei
que nossos olhos
sorriam para sempre
na distância.
Parece pouco?
Chão de sal grosso e ouro que se racha.
A ponto de partir, já sei que
nossos olhos sorriem na distância.
Lentes escuríssimas sob os pilotis.

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