segunda-feira, 10 de fevereiro de 2014

O VIl Metal - Ferreira Gullar

Escrito

A prata é um vegetal como a alface.
Primaveril, frutifica em setembro.
É branca, dúctil, dócil (como diz a Lucy)
e, em março, venenosa.
O cobre é um metal que se extrai da flor do fumo.
Tem o azul do açúcar.
É turvo, doce e disfarçado.
O ouro é híbrido – flor e alfabeto.
Osso de mito, quando oiro é teia-de-abelha.
A precisão do maduro. Dele se fabricam a urina e a velhice.

OCORRÊNCIA

Aí o homem sério entrou e disse: bom dia.
Aí outro homem sério respondeu: bom dia.
Aí a mulher séria respondeu: bom dia.
Aí a menininha no chão respondeu: bom dia.
Aí todos riram de uma vez
Menos as duas cadeiras, a mesa, o jarro, as flores
as paredes, o relógio, a lâmpada, o retrato, os livros
o mata-borrão, os sapatos, as gravatas, as camisas, os lenços.

Um homem ri

Ele ria da cintura para cima. Abaixo
da cintura, atrás, sua mão
furtiva
inspecionava na roupa
Na frente e sobretudo no rosto, ele ria,
expelia um clarão, um sumo
servil
feito uma flor carnívora se esforça na beleza da corola
na doçura do mel
Atrás dessa auréola, saindo
dela feito um galho, descia o braço
com a mão e os dedos
e à altura das nádegas trabalhavam
no brim azul das calças
(como um animal no campo na primavera
visto de longe, mas
visto de perto, o focinho, sinistro,
de calor e osso, come o capim do chão)
O homem lançava o riso como o polvo lança a sua tinta e foge
Mas a mão buscava o cós da cueca
talvez desabotoada
um calombo que coçava
uma pulga sob a roupa
qualquer coisa que fazia a vida pior.

Vida

a minha, a tua,
eu poderia dizê-la em duas
ou três palavras ou mesmo
numa

corpo

sem falar das amplas
horas iluminadas,
das exceções, das depressões
das missões,
dos canteiros destroçados feito a boca
que disse a esperança

fogo

sem adjetivar a pele
que rodeia a carne
os últimos verões que vivemos
a camisa de hidrogênio
com que a morte copula
(ou a ti, março, rasgado
no esqueleto dos santos)

Poderia escrever na pedra
meu nome

gullar

mas eu não sou uma data nem
uma trave no quadrante solar
Eu escrevo

facho

nos lábios da poeira

lepra
vertigem
cana

qualquer palavra que disfarça
e mostra o corpo esmerilado do tempo

câncer
vento
 laranjal

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