A velhice é cansaço... E esse cansaço
Não nos vem de trabalho ou movimento...
O que ora faço é demorado e lento
E acho mal feito o pouco que ainda faço.
Tudo me cansa: — até o pensamento!
Já pouquíssimo ando e arrasto o passo...
Quase sempre dorminte ou sonolento,
Vivo uma triste vida de madraço.
Nunca fui mandrião nem calaceiro,
Nem também muito ativo, é bem que o diga,
Mas domei sempre a inércia, sobranceiro.
Agora, a própria inércia me castiga,
Pois se acaso repouso um dia inteiro
Esse mesmo repouso me fatiga!
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Guimarães Passos
Nihil
Sem aos outros mentir, vivi meus dias
desditosos por dias bons tomados,
das pessoas alegres me afastando
e rindo às outras mais do que eu sombrias.
Enganava-me assim, não me enganando;
fiz dos passados males alegrias,
do meu presente e das melancolias
sempre gozos futuros fui tirando.
Sem ser amado, fui feliz amante;
imaginei-me bom, culpado sendo;
e se chorava, ria ao mesmo instante.
E tanto tempo fui assim vivendo,
de enganar-me tornei-me tão constante,
que hoje nem creio no que estou dizendo.
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Florbela Espanca
A minha piedade
Tenho pena de tudo quanto lida
Neste mundo, de tudo quanto sente,
Daquele a quem mentiram, de quem mente,
Dos que andam pés descalços pela vida,
Da rocha altiva, sobre o monte erguida,
Olhando os céus ignotos frente a frente,
Dos que não são iguais à outra gente,
E dos que se ensangüentam na subida!
Tenho pena de mim... pena de ti...
De não beijar o riso duma estrela...
Pena dessa má hora em que nasci...
De não ter asas para ir ver o céu...
De não ser Esta... a Outra... e mais Aquela...
De ter vivido e não ter sido Eu...
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Camilo Pessanha
Caminho II
Encontraste-me um dia no caminho
Em procura de quê, nem eu o sei.
— Bom dia, companheiro — te saudei,
Que a jornada é maior indo sozinho
É longe, é muito longe, há muito espinho!
Paraste a repousar, eu descansei...
Na venda em que poisaste, onde poisei,
Bebemos cada um do mesmo vinho.
É no monte escabroso, solitário.
Corta os pés como a rocha dum calvário,
E queima como a areia!... Foi no entanto
Que chorámos a dor de cada um...
E o vinho em que choraste era comum:
Tivemos que beber do mesmo pranto.
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Marquesa de Alorna
Retratar a tristeza em vão procura
quem na vida um só pesar não sente,
porque sempre vestígios de contente
hão de surgir por baixo da pintura;
porém eu, infeliz, que a desventura
o mínimo prazer me não consente,
em dizendo o que sinto, a mim somente
parece que compete esta figura.
Sinto o bárbaro efeito das mudanças,
dos pesares o mais cruel pesar,
sinto do que perdi tristes lembranças;
condenam-se a chorar, e a não chorar,
sinto a perda total das esperanças,
e sinto-me morrer sem acabar.
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Pedro de Andrade Caminha
Quanto cuido, senhora, quanto escrevo,
Tudo em vossos fermosos olhos leio,
Neles, ante quem tudo é escuro e feio,
Aprendo e vejo como amar-vos devo.
Vejo que ao vosso amor todo me devo,
Mas não vos sei amar, e assi me enleio
Que não sei se vos amo ou se o receio,
E a julgar em mim isto não me atrevo.
Em vós cuido, em vós falo o dia e ora,
Mouro por ver-vos, ir-vos ver não ouso,
Por não ver quanto mais devo do que amo;
Ó sol e ó. sombra o vosso nome chamo,
Fora destes cuidados não repouso;
Se isto é amor, vós o julgai, senhora!
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Luís de Camões
Tanto de meu estado me acho incerto,
Que em vivo ardor tremendo estou de frio;
Sem causa, justamente choro e rio,
O mundo todo abarco e nada aperto.
É tudo quanto sinto, um desconcerto;
Da alma um fogo me sai, da vista um rio;
Agora espero, agora desconfio,
Agora desvario, agora acerto.
Estando em terra, chego ao Céu voando;
Numa hora acho mil anos, e é jeito
Que em mil anos não posso achar uma hora.
Se me pergunta alguém por que assim ando,
Respondo que não sei; porém suspeito
Que só porque vos vi, minha Senhora.
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Rodrigues de Abreu
Crianças
Somos duas crianças! E bem poucas
no mundo há como nós: pois, minto e mentes
se te falo e me falas; e bem crentes
somos de nos magoar, abrindo as bocas...
Mas eu bem sinto, em teu olhar, as loucas
afeições, que me tens e também sentes,
em meu olhar, as proporções ingentes
do meu amor, que, em teu falar, há poucas!
Praza aos céus que isto sempre assim perdure:
que a voz engane no que o olhar revela;
que jures não amar, que eu também jure...
Mas que sempre, ao fitarmo-nos, ó bela,
penses: "Como ele mente" - e que eu murmere:
"quanta mentira têm os lábios dela!"
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